O Princípio da Prioridade Absoluta aos Direitos da Criança


O Princípio da Prioridade Absoluta
aos Direitos da Criança
e do Adolescente e a Discricionariedade
Administrativa
Ana Maria Moreira
Marchesan,

Promotora de Justiça no Rio Grande
do Sul.

(publicado no site do CAOPIJ-RS)

1. INTRODUÇÃO:
Nossa vivência profissional de mais
de cinco anos em Promotorias com atribuições voltadas às questões afetas à
infanto-adolescência, tendo como suporte jurídico basilar o Estatuto da Criança
e do Adolescente (L. n.º 8.069/90), tem nos despertado diversas indagações que
desembocam na seguinte pergunta: como tornar reais os direitos consagrados, à
exaustão, pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, inspirados pela
Constituição-Cidadã de 1988 ?

Se é certo que o art. 227 da CF
decorreu de uma imensa pressão popular que guindou o princípio da prioridade
absoluta à hierarquia de norma constitucional, " lex superior ", não é menos
certo que a norma infraconstitucional que se lhe seguiu - o ECA - objetivou,
através de uma série de preceitos ousados para nossa sociedade marcada por
desigualdades e injustiças sociais, criar uma tensão entre a norma e a
realidade, de tal sorte que, através de diversos mecanismos, notadamente os de
participação popular, fosse possível forjar um avanço no tecido
social.

Dentre esses mecanismos, sobressai o
da ação civil pública para tutela dos bens-interesses contemplados pela Carta
Magna e pelo ECA, para cuja propositura estão legitimados, concorrentemente, o
Ministério Público, a União, os Estados, os Municípios, os Territórios, o
Distrito Federal e as associações legalmente constituídas, há pelo menos um ano,
e que incluam entre seus fins institucionais a defesa dos interesses e direitos
protegidos pelo ECA .

Ocorre que a força vanguardeira que
inspirou o art. 227 da CF e o Estatuto da Criança e do Adolescente e, de forma
muito nítida, vem alimentando iniciativas do Ministério Público - especialmente
o de primeiro grau - nessa seara, perde terreno quando essas demandas, de
solução conturbada, desembocam nos tribunais.

Avaliando uma série de acórdãos
sobre o tema - que ainda são poucos face à recenticidade dos dispositivos legais
neles debatidos -, concluímos que o principal argumento para o não-acolhimento
da pretensão deduzida em juízo decorre, direta ou indiretamente , do chamado "
poder discricionário " do Administrador Público.

Nesses arestos, o Judiciário acaba
por concluir não lhe ser possível, sob pena de se imiscuir na esfera de
atribuições de outro Poder, condenar o Poder Executivo numa obrigação de fazer
ou não-fazer (geralmente da primeira espécie), pena de ser vulnerado o postulado
da discricionariedade administrativa.

Por entendermos que essa idéia não
se coaduna com o espírito do Constituinte - que merece respeito - nem com o
claramente vazado nas normas escritas por muitas e anônimas mãos aglutinadas na
Lei nº 8.069/90 - é que resolvemos desenvolver o presente estudo, o qual se
pretende seja INSTRUMENTAL, ou seja, ferramenta útil para todos aqueles que
labutam na área da infância e juventude, principalmente direcionado aos que têm
como compromisso pessoal forjar o avanço social, a partir de uma lei que pode
ser adjetivada de revolucionária - O ESTATUTO DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE.

Nosso estudo, baseia-se na
experiência forense, em diversos julgados pesquisados e na escassa monografia
existente sobre o tema.

2. EVOLUÇÃO DO CONCEITO DE
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA:

A idéia de um poder discricionário
do qual são dotados os administradores da coisa pública nasce concomitantemente
com a do Estado de Direito.

A Revolução Francesa de 1789, ao
soterrar a monarquia, fez eclodir profundas mudanças em nível de infra e
super-estrutura, numa linguagem marxista.

Na ordem jurídica, as alterações
foram notórias, marcando a passagem do Estado de Polícia ou Absolutista - " L'
Etat C'est moi " - para o Estado de Direito.

A concepção de Estado de Direito,
gestada no início do Século XVIII e influenciada, decisivamente, por nomes como
os de ROUSSEAU e de MONTESQUIEU 1 , tem como aspecto nuclear a submissão do
Executivo à lei. A legalidade cede ao arbítrio que imperava na estrutura
monarco-despótica rompida pela burguesia emergente.

1 "Nesse sentido positiva o jurista
português AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, citado por Celso Antônio Bandeira de Mello em
"Discricionariedade e Controle Jurisdicional", p. 11, Ed. Malheiros, 2ª edição",
quando afirma:" Aquilo que o Estado de Direito é forçosamente é Montesquieu e
Rousseau, talvez mais Rousseau que Montesquieu" (Reflexões sobre a Teoria do
Desvio de Poder , Coimbra Editora, 1940, p. 8) .

Para JEAN JACQUES ROUSSEAU, o Estado
é resultado de um acordo de vontades, de um contrato social, concluindo que
apenas o Estado é fonte de Direito, sendo tal a legítima expressão da " volonté
générale". Acreditava ele que a justificação do poder residiria na vontade
direta dos vários indivíduos que compõem o todo social 2.

2 "El Contrato Social" , tradução
espanhola, Editorial Maucci, Barcelona.

O pensamento de MONTESQUIEU, o qual
deixou sua confortável posição na magistratura francesa para refletir sobre a
acelerada evolução política de seu tempo, vem resumido em sua principal obra " O
Espírito das Leis ", na qual expressa, com a ironia que lhe é
peculiar:

"A liberdade política somente existe
nos governos moderados. Mas nem sempre ela existe nos governos moderados. Só
existe quando não se abusa do poder, pois é uma experiência eterna que todo
homem que detém o poder é levado a dele abusar; e vai até onde encontra limites.
Quem diria ? A própria virtude precisa de limites. Para que não possam abusar do
poder, precisa que, pela disposição das coisas, o poder freie o poder 
 
3 p.163, Ed. Saraiva .
É na França que o Direito
Administrativo ganha foros de disciplina, inclusive a nível acadêmico, país
pioneiro na formulação de seus princípios basilares, dentre eles o do chamado
"poder discricionário".

Com efeito, costuma-se dizer que a "
Certidão de Nascimento " do Direito Administrativo está materializada numa lei
francesa de 1800, conhecida por Lei de 28 do pluvioso ano VII (calendário da
Revolução Francesa).

Sem embargo da pertinência desse
marco, de inegável valia do ponto de vista da organização histórica dos
acontecimentos, é mister salientar que a função Administrativa sempre existiu,
desde a Antigüidade, sem solução de continuidade, ao contrário das demais
funções do Estado (Legislativa e Judicante), que sofreram algumas interrupções,
principalmente em períodos de arbítrio e de hipertrofia do
Executivo.

A escola de administrativistas
franceses, que construiu o arcabouço doutrinário e principiológico sobre o qual
nós, hoje, ainda, comodamente, trabalhamos 4 estruturou o conceito de
discricionariedade administrativa em torno da idéia de PODER, colocando-a como
atributo imprescindível ao seu exercício.

4 Encabeçada por Maurice Hauriou;
Francis-Paul Benoit; Laferrière e Barthelémy, dentre outros.

Nesse sentido, vale traduzir trecho
da obra de MAURICE HAURIOU, vazado nos seguintes termos:

"A administração não é animada,
naquilo que ela faz, por uma vontade interior, mas sim, por vontade executiva
livre submetida à lei como um poder exterior. Segue-se que, de um lado, nas
matérias de sua competência, enquanto seu poder não está ligado por disposições
legais, ele é inteiramente autônomo e, por outro lado, nas matérias em que seu
poder parece ligado pela lei, ele se conforma sempre a uma certa escolha de
meios que lhe permite de se conformar voluntariamente à lei.

Esta faculdade de se conformar
voluntariamente à lei é tanto mais reservada à administração das leis quanto ela
goza constitucionalmente de uma certa liberdade na escolha dos momentos e das
circunstâncias em que assegura esta aplicação .

Conforme este ponto de vista, convém
mostrar novamente que o poder discricionário da administração consiste na
faculdade de apreciar a 'oportunidade' que pode ter de tomar ou não tomar uma
decisão executória, ou de não tomá-la imediatamente, mesmo que seja prescrita
pela lei"5.

5 No original, transcreve-se:
"L'administration n'est pas animée, dans ce qu'elle fait, d'une volonté
intérieure légale; elle est animée d'une volonté exécutive libre assujettie à la
loi comme à un pouvoir extérieur. Il suit da là, d'une part, que, dans les
matières de sa compétence, lorsque son pouvoir n`est pas lié par des
dispositions légales, il est entierement autonome, et, d'autre parte, que dans
les matières où son pouvoir paraît liè par la loi, il lui se conforme toujors à
un certain choix des moyens qui lui permet de se conformer volontairement à la
loi.

"Cette faculté de se conformer
volontairement à la loi est d`autant plus rèservèe à l` administration des lois
et qu`elle jouit constituitionnellement d`une certaine latitude dans le choix
des moments et des circonstances où elle assure cette application.

"A ce point de vue, il convient
d`indiquer à nouveau que le pouvoir discrètionnaire de l`administration consiste
en la facultè d`apprècier l`opportunitè qu`il peut y avoir à prendre ou à ne pas
prendre une décision exécutoire, ou à ne pas la prendre immediatement, mème
lorsqu`elle est prescrite par la loi" (Précis Élémentaire de Droit Administratif
", Librairie du Recueill Sirey, 1938, p. 229).

Do escrito por HAURIOU, no início do
século, emerge a tônica da discricionariedade, segundo sua ótica: poder do
administrador que, nas matérias de sua competência, não delimitadas pela lei,
estaria livre para agir de acordo com critérios de conveniência e oportunidade
.

FIORINI critica essa visão inicial
do problema, por acabar deixando ao arbítrio do administrador (o que não se
coaduna com o Estado de Direito) a forma de atuação quando a lei seja omissa
quanto a ela.

São dele as seguintes
palavras:

"Para a velha tese da legalidade,
donde o poder administrador devia executar a lei, resultava difícil justificar a
existência da denominada discricionariedade da administração pública. Esta se
apresentava como um poder que tinha a administração quando a lei não havia
disposto como devia atuar ante certas circunstâncias. Este reconhecimento da
existência da discricionariedade administrativa era a falência do caráter
absoluto da legalidade, que sustentava o dogma de que a administração só
executava a lei. A falência se salvava distinguindo-se a discricionariedade como
um poder dentro da administração, criador de normas particulares, que não tinham
a consistência jurídica das que executava a administração" 6.

6 Bartolome A. Fiorini, " Manual de
Derecho Administrativo", Primera Parte, Buenos Aires, Ed. La Ley, 1968, p.
233.

O mestre português André Gonçalves
Pereira, após vaticinar contra aqueles que vêem no poder discricionário uma
resultante da falta de disciplina legal, faz questão de distingui-lo do poder
arbitrário, " in verbis":

"O poder discricionário não resulta
da ausência de regulamentação legal de dada matéria, mas sim de uma forma
possível de sua regulamentação: através de um poder, ou seja do estabelecimento
por lei de uma competência, cuja suscetibilidade de produzir efeitos jurídicos
compreende a de dar validade a uma decisão, a uma escolha, que decorre da
vontade psicológica do agente.

Discricionariedade e vinculação são
assim formas diversas de regulamentação por lei de certa matéria; mas quando a
lei não contemple determinada situação de vida, e não o integre pelo menos
genericamente na sua previsão, nenhum poder tem em relação a ela o agente, - e
sustentar o contrário seria pôr em dúvida o valor do princípio da legalidade"
7.

7Erro e Ilegalidade no Acto
Administrativo, Lisboa, Ed. Ática, 1962, pp. 222-223.

MICHEL STASSINOPOULOS, citado pelo
legendário THEMISTOCLES BRANDÃO CAVALCANTI 8, fez um apanhado das teorias acerca
da natureza do ato discricionário que, no início do nosso século, encontravam
guarida doutrinária. Dentre elas, destaca-se a encampada pelo próprio
Stassinopoulos, segundo a qual a discricionariedade coincide com a determinação
ou a capacidade de determinação do sentido de uma noção deixada imprecisa pela
lei, havendo nisso a possibilidade de escolher entre as diversas soluções, a
melhor, ou a que for julgada melhor, por motivos de conveniência, de
oportunidade, de interesse público.

8 Tratado de Direito Administrativo,
vol. V, p. 11, Ed. Freitas Bastos.

Essa noção, a nosso ver superada
pela melhor doutrina da atualidade (v.g. Celso Antônio Bandeira de Mello; Maria
Silvia Z. Di Pietro; Diogo de Figueiredo Moreira Neto, dentre outros), ainda vem
sendo reconhecida em diversos arestos de nossos tribunais, receosos de ousarem
interferir no intangível " mérito " do ato administrativo.

Outra corrente, criticada pela sua
falta de consistência científica ( pois confunde a natureza do ato
discricionário com uma de suas conseqüências ), qualifica de discricionário o
poder não sujeito ao controle jurisdicional (STASSINOPOULOS debita essa
abordagem a LAUN, JELLINEK e GEGOTZ).

Essa teoria, a par de seu
arrigorismo técnico, também não mais encontra respaldo na doutrina hodierna, que
vem, paulatinamente, admitindo serem todos os atos administrativos, mesmo os de
cunho discricionário, sujeitos ao crivo do Poder Judiciário. Lamentavelmente, na
jurisprudência, ainda há algum receio de invasão na esfera de atuação do Poder
Executivo (v. RDA 89/134 e TJSP, REO 165.977), a despeito de ter nossa vigente
Carta Magna ampliado a noção de universalidade da jurisdição: "a lei não
excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"; (inc.
XXXV do art. 5º), aderindo a uma verdadeira tendência mundial de abertura do
Poder Judiciário 9.

9 Cândido Rangel Dinamarco, em sua
magnífica obra " A Instrumentalidade do Processo ", p. 32, 3ª ed., Malheiros,
quando discorre acerca das mutações constitucionais do processo, enfatiza a
tendência do Estado contemporâneo, enquanto Estado-de-direito, onde assoma a
legalidade e abertura do Poder Judiciário como guarda último da Constituição e
dos valores e garantias que ela abriga e oferece, fruto dos sucessivos
movimentos político-sociais da Humanidade nos últimos duzentos anos, com a
Revolução Francesa, e a industrial, gerando a ascensão da burguesia e do
proletariado e a universalização do voto mais a urbanização da população e
expansão dos meios de comunicação de massa.

A vigente Carta Magna avançou no
tocante ao acesso à Justiça, pois, além de ter suprimido a expressão individual,
o que franqueia a tutela dos interesses metaindividuais, acrescentou a expressão
" ameaça a direito ", se comparada com o art. 153, parág. 4º, da Emenda
Constitucional nº 1/69.

Da ênfase que era dada à atividade
discricionária enquanto vinculada à idéia de poder 10 11, evoluiu-se, face ao
fortalecimento do princípio da legalidade 12 para a idéia de
poder-dever.

10 Hely Lopes Meirelles traz noção
emblemática da discricionariedade em torno da idéia de PODER: "Poder
discricionário é o que o direito concede à Administração de modo explícito ou
implícito, para a prática de atos administrativos com liberdade na escolha de
sua conveniência, oportunidade e conteúdo" (Direito Administrativo Brasileiro,
p. 97, 14ª edição, Revista dos Tribunais)

11 EDILSOM FARIAS, em artigo
intitulado " Técnicas de Controle da Discricionariedade Administrativa"
(Arquivos do Ministério da Justiça, 47/159), chega a falar em " potestades
discricionárias da administração ".

12 No Estado-de-direito, o exercício
do poder está amarrado pelo princípio da legalidade. Cabe ao administrador
público, em todos os casos, mesmo naqueles em que a lei não descreve em minúcias
como e o quê fazer, procurar sempre a solução ótima para o caso concreto. Vale
dizer, cabe ao administrador, enquanto ocupante de uma função pública, o dever
de buscar o interesse social.

DIOGO DE FIGUEIREDO MOREIRA NETO,
comentando o assunto, conclui ser preferível conceber a discricionariedade
administrativa como uma competência para definir, no caso, o interesse público,
atribuindo-lhe a natureza jurídica de poder-dever 13.

13 " In " "Legitimidade e
Discricionariedade", p. 33, 1ª ed. , Forense.

Essa trajetória está associada ao
acréscimo de funções sofrido pelo Estado que passou a ser de cunho
SOCIAL.

Consoante os adjetivos que as
Constituições foram acrescentando à idéia de Estado, conclusão essa
diagnosticada com precisão por MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO 14, esse passou de
mero Estado de Direito para um Estado Social, que, hoje, ainda, se almeja seja
DEMOCRÁTICO, atributo esse que virá a delimitar ainda mais a abrangência da
discricionariedade administrativa .

14 Discricionariedade Administrativa
na Constituição de 1988, Ed. Atlas.

Não por outra razão, a doutrina
moderna passa a identificar a discricionariedade mais com a idéia de DEVER do
que com a de PODER, acentuando sua condição de serviente, caracterizador de
função pública.

Celso Antônio Bandeira de Mello 15,
é categórico ao analisar:

"Na Ciência do Direito
Administrativo, erradamente e até de modo paradoxal, quer-se articular os
institutos do direito administrativo - inobstante ramo do direito público - em
torno da idéia de poder, quando o correto seria articulá-los em torno da idéia
de dever, de finalidade a ser cumprida. Em face da finalidade, alguém - a
Administração Pública - está posta numa situação que os italianos chamam de
doverosità, isto é, sujeição a esse dever de atingir a finalidade. Como não há
outro meio para se atingir esta finalidade, para obter-se o cumprimento deste
dever, senão irrogar a alguém certo poder instrumental, ancilar ao cumprimento
do dever, surge o poder, como mera decorrência, como mero instrumento
impostergável para que se cumpra o dever. Mas é o dever que comanda toda a
lógica do Direito Público - grifei - . Assim, o dever assinalado pela lei, a
finalidade nela estampada, propõem-se, para qualquer agente público, como um
ímã, como uma força atrativa inexorável do ponto de vista jurídico.

15 "in" Discricionariedade
Administrativa e Controle Jurisdicional, pp.12/14, 2ª ed.,
Malheiros.

Outros doutrinadores pátrios 16,
menos ousados que o mestre Celso Antônio, não chegam a situar a
discricionariedade na pauta dos deveres, mas questionam o porquê da nomenclatura
usualmente empregada - " poder discricionário " -, bem como apontam os diversos
limites constitucionais e legais a esse poder, face à marcha dos acontecimentos
históricos que têm levado a uma democratização do Estado de direito, com sua
tendência, inexorável, de propiciar maior envolvimento direto do cidadão nos
atos de governo.

16 v., nesse sentido, José Cretella
Júnior, em seu Curso de Direito Administrativo, p. 224, 14ª edição, Forense, e
Maria Sylvia Zanella Di Pietro, op. cit., p. 171.

Numa linha própria de pensamento,
não menos vanguardista e científica, Lúcia Valle de Figueiredo afirma consistir
a discricionariedade numa " competência-dever" atribuída ao administrador para
agir no caso concreto, de acordo com o critério da razoabilidade geral
17.

17 Curso de Direito Administrativo,
p. 123, 1ª ed., Malheiros.

Por demais significativa é a lição
trazida pelo mestre KARL ENGISCH, em sua " Introdução ao Pensamento Jurídico ",
onde, ainda em 1956, prelecionava:

"Aqui podemos também lançar mão do
conceito evanescente de discricionariedade vinculada e dizer que a
discricionariedade é vinculada no sentido de que o exercício do poder de escolha
deve ir endereçado a um escopo e resultado da decisão que é o único ajustado, em
rigorosa conformidade com todas as directrizes jurídicas" 18.

18 obra citada, p. 220, 6ª edição,
Ed. Fundação Calouste Gulbenkian.

Por fim, há quem vislumbre, como o
alemão HUBER e o francês LÉON DUGUIT, antagonismo entre as idéias de
discricionariedade administrativa e a de Estado de Direito, na medida em que,
sob a inspiração do princípio da legalidade, inexiste atividade administrativa
não submissa aos seus cânones.

Enquanto HUBER ironiza, comparando a
discricionariedade a um " Cavalo de Tróia " nos arraiais do Direito
Administrativo 19, DUGUIT assevera:

" A limitação da competência, não
somente quanto ao objeto do ato, mas ainda quanto ao motivo que o determina,
constitui garantia muito forte contra o arbítrio dos agentes públicos. A
conseqüência disso, com efeito, é que nada mais foi deixado à apreciação
discricionária do agente administrativo" 20.

19 citado por ODETE MEDAUAR, em " O
Direito Administrativo em Evolução", São Paulo, Ed. Revista dos Tribunais, 1992,
p. 184.

20 "apud" AFONSO RODRIGUES QUEIRÓ, "
in " Teoria do Desvio de Poder em Direito Administrativo, Revista de Direito
Administrativo, vol. VI, p. 44.

Não compactuamos com as posições
extremas dos ilustres autores estrangeiros, porquanto entendemos realmente haver
um DEVER discricionário. A discricionariedade, sob nossa ótica, é natural da
prática do direito, porque a vida é bem mais rica do que a lei, sendo impossível
ao legislador ordenar e prever todas as situações de vida, de exercício do poder
e de seus desdobramentos.

3. CONTROLE JURISDICIONAL DA
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA:

Razão assiste ao preclaro publicista
Celso Antônio Bandeira de Mello (talvez o mais completo da atualidade
brasileira) quando desloca o eixo metodológico do conceito de discricionariedade
da noção de poder para a de DEVER, noção essa muito mais afinada ao Direito
Público e à situação jurídica de FUNÇÃO.

O dever discricionário do
administrador público está, inegavelmente, cingido por diversos princípios
trazidos à lume pela Constituição de 1988 (inclusive em seu preâmbulo) e por
normas de hierarquia inferior.

Por outro lado, o princípio da
legalidade, norte maior do Administrador Público, foi ampliado de tal sorte a
contemplar não mais somente a lei, formalmente considerada, mas o Direito como
um todo, com toda a sua carga valorativa.

Não podemos conviver mais com a
marca da democracia meramente representativa, segundo a qual os cidadãos
limitam-se a eleger seus representantes e, após depositarem seu voto na urna,
aguardam passivamente à sucessão de atos de governo, sem qualquer participação
na tomada de decisões.

Se desconformes com o modo de
governar dos eleitos, resta aos eleitores a possibilidade de, no próximo pleito,
não tornar a elegê-los.

Esse modelo político não serve ao
terceiro milênio.

Dotados dessa visão prospectiva,
nossos constituintes de 1988 engendraram e inscreveram no texto Constitucional
diversos mecanismos de participação popular nos atos de governo, em perfeita
consonância com o princípio gravado no parágrafo único do art. 1º da CF: "Todo o
poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou
diretamente, nos termos desta Constituição".

Sabedores de que a mobilização
popular, máxime em um país de dimensões continentais como o Brasil, é de difícil
ou impraticável influência direta junto aos governantes, nossos legisladores (a
nível Constitucional e Infraconstitucional), acolhendo soluções do Direito
alienígena e criando algumas genuinamente brasileiras, outorgaram legitimação a
certas entidades ou instituições, reconhecendo-lhes representatividade para
levar à análise de um outro segmento do PODER, o Judiciário, anseios e
pretensões que transcendem à esfera individual.

Essa multiplicidade de remédios
processuais alinhados na CF de 1988 ("habeas data"; mandado de injunção; ação
popular; mandado de segurança individual e coletivo; ação direta de
inconstitucionalidade; ação declaratória de inconstitucionalidade por omissão e
quejandos) aliada aos inúmeros legitimados ativos para suas proposituras,
consubstanciaria verdadeira letra-morta se mantido o dogma da inatacabilidade do
mérito do ato administrativo.

Quando se aborda o tema da
discricionariedade como reduto privativo do administrador 21, geralmente se leva
em conta a clássica teoria da separação de poderes, cuja base teórica remonta
aos séculos XVII e XVII, tendo em Montesquieu seu mais prolífico
ideólogo.

21 Exemplo desse tipo de decisão
retrógrada encontra-se em acórdão prolatado pela 6ª Turma do e. Superior
Tribunal de Justiça, Rel. Min. Adhemar Maciel, no Rec. Especial nº 63.128-9,
oriundo de uma ação civil pública promovida com o fito de obrigar o Governo
Goiano a construir um centro de recuperação e triagem para adolescentes
infratores, onde encontramos afirmações como as que seguem: "A Constituição
Federal e em suas águas a Constituição do Estado de Goiás são dirigentes e
programáticas. Têm, no particular, preceitos impositivos para o Legislativo
(elaborar leis infraconstitucionais de acordo com as tarefas e programas
pré-estabelecidos) e para o Judiciário (atualização constitucional). Mas, no
caso dos autos as normas invocadas não estabelecem, de modo concreto, a
obrigação do Executivo de construir, no momento, o Centro. Assim, haveria uma
intromissão indébita do Poder Judiciário no Executivo, único em condições de
escolher o momento oportuno e conveniente para a execução da obra
reclamada".

Deveras. Não se pode olvidar o
contexto social e político que levou o famoso Barão de Brède e de Montesquieu
(1689/1755) a construir tal estrutura: o absolutismo monárquico que imperava no
mundo ocidental antes da Revolução Burguesa de 1789, cuja característica
marcante era, sem dúvida, a hipertrofia do Executivo sobre as demais expressões
de poder.

Naquele cenário se tornava mais
fácil compreender porque o nobre, conquanto partidário da repartição tricotômica
do poder, idealizava um Judiciário amorfo, ao ponto de afirmar, literalmente:
"Dos três Poderes, de que falamos, o de julgar é de certo modo nulo. Não restam
senão dois"22.

22 "O Espírito das Leis" Traduzido e
Anotado pelo Des. Pedro Vieira Mota, nota 55, p. 26, Ed. Saraiva.

A pouca relevância política dada ao
Judiciário, era contraposta pelo teórico à força do Legislativo, único poder
capaz de, na sua ótica, neutralizar os abusos do Executivo (" As leis devem,
todo o tempo, castigar o orgulho da dominação ") e mitigar as
desigualdades.

Esse Judiciário, definido por
Montesquieu como " a boca que pronuncia as palavras da lei ", evoluiu, graças à
plena superação da idéia de um poder ilimitado, e ganhou, na prática, " status "
de Poder, compreendido, politicamente, como a capacidade de decidir
imperativamente e impor decisões.

Cândido Rangel Dinamarco23 tece
profundas considerações sobre a Jurisdição, enquanto expressã do poder estatal
(que é uno), concluindo ser ela uma das funções do Estado, a qual,
ontologicamente, não se distingue da administração e da legislação. O que a
identifica e distingue é sua vocação para voltar-se aos casos concretos, às
situações de conflitos interpessoais.

23 Encerra seus comentários sobre
uma visão funcional da Jurisdição, apregoando: "Essa visão funcional da
jurisdição, partindo da unidade do poder e diversidade das formas do seu
exercício segundo os objetivos propostos, elimina certas preocupações minudentes
e exageradas, como a da natureza jurisdicional ou não das atividades do juiz na
execução civil ou no processo criminal. Muito mais relevante do que afirmá-la ou
negá-la nesses casos, é saber que se trata invariavelmente do exercício do poder
e que, por isso, são atividades que se pautam por desenganada marca de
publicismo, sobrelevando aos interesses dos demais sujeitos os do Estado" (op.
cit., p. 119).

O juiz de hoje deve ter presente,
quando conduz um processo e julga uma causa, que suas ações são manifestações do
poder estatal. Portanto, qualquer posição que adote tem conotação política, que
deve se pautar, não em seus gostos pessoais, em suas idiossincrasias, mas nos
valores dominantes do seu tempo, pois como afirma o multicitado Cândido
Dinamarco, o juiz "é, afinal de contas, um legítimo canal de comunicação entre o
mundo axiológico da sociedade e os casos que é chamado a julgar" 24.

24 "O Poder Judiciário e o Meio
Ambiente", RT 631/28.

José Afonso da Silva, define, com
inequívoco bom senso, o que seja harmonia entre os poderes:

"cortesia no trato recíproco e no
respeito às prerrogativas e faculdades a que mutuamente todos têm direito. De
outro lado, cabe assinalar que a divisão de funções entre os órgãos do poder nem
sua independência são absolutas. Há interferências que visam ao estabelecimento
de um sistema de freios e contrapesos, à busca do equilíbrio necessário à
realização do bem da coletividade e indispensável para evitar o arbítrio e o
desmando de um em detrimento do outro e especialmente dos
governados"25.

25 Direito Constitucional Positivo,
p. 97, 5ª, Ed. Rev. dos Tribunais.

Essa real harmonia leva o
Judiciário, quando provocado, a ser o responsável pela identificação do
interesse público, não podendo se furtar a fazê-lo. Discorrendo sobre o tema, o
insigne MAURO CAPPELLETTI, após acentuar a possibilidade de o Judiciário atuar
para coibir incorreções praticadas pelos membros dos outros poderes, afirma a
relevância da atuação desse Poder para colaborar com a identificação do
interesse público e garantia de que esse seja realmente seja alcançado
26.

26 "Juízes Legisladores?", 1993, p.
100, Ed. Sérgio Antônio Fabris.

Partindo-se da premissa de que
nenhuma lesão ou ameaça de lesão a direito (individual, coletivo, difuso,
público ou privado) não seja passível de apreciação pelo Poder Judiciário, resta
concluir que também a discricionariedade administrativa está sujeita ao controle
jurisdicional27.

27 A essa conclusão já chegara,
aliás, o administrativista Oswaldo Aranha Bandeira de Mello (em seus "
Princípios Gerais de Direito Administrativo", vol. 1/417), quando se posicionou
a favor da sindicabilidade do mérito do ato administrativo com respaldo no art.
153, parág. 4º, da antiga Carta Constitucional (hoje art. 5º, inc.
XXXV).

Nessa linha de raciocínio, é digno
de transcrição parte do aresto da lavra do Des. Nery da Silva, do Tribunal de
Justiça de Goiás, onde, após trazer à lume lições exemplares da magistrada
Federal Lúcia Valle Figueiredo, infere:

"Não há imunidade legal para quem
infringe direito. O poder discricionário não está situado além das fronteiras
dos princípios legais norteadores de toda iniciativa da administração e
sujeita-se à regular apreciação pela autoridade judicante" 28.

28 RT 721/212.
Extrai-se das colocações acima a
exata dimensão que o Relator daquela apelação interposta nos autos de uma ação
civil pública tem de sua função de fazer uma lei para o caso concreto; do
caráter indeclinável da Jurisdição e da legalidade que deve inspirar todos os
atos administrativos.

Exemplo ímpar de magistrado ligado
ao seu tempo, cônscio de seu dever de fazer Justiça e, através dela, mudar a
anacrônica realidade social vivenciada no Brasil, a quem rendemos neste trabalho
nossas homenagens, se encontra na pessoa do Dr. Eugênio Fachini Neto, cuja
sentença prolatada em ação civil pública oriunda da Vara Regional da Infância e
da Juventude da Comarca de Passo Fundo (RS) serviu de base a outra, emanada do
Juizado Regional de Santo Ângelo (RS), e ao aresto da sétima Câmara Cível do
Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (Relator o Des. Sérgio Gischow
Pereira), no qual o colegiado entendeu ser passível de apreciação pelo Poder
Judiciário obrigação de fazer demandada do Executivo Estadual, por ser
respaldada em princípio constitucional e em lei infraconstitucional, sem que com
isso estivesse havendo qualquer tipo de intromissão do Judiciário na
discricionariedade do Administrador Público. Na ementa do acórdão, afirma o
insigne Relator:

"Valores hierarquizados em nível
elevadíssimo, aqueles atinentes à vida e à vida digna dos menores.
Discricionariedade, conveniência e oportunidade não permitem ao administrador
que se afaste dos parâmetros principiológicos e normativos da Constituição
Federal e de todo o sistema legal"29.

29 Apel. Cível nº 596017897,
12.03.97.

De todos os ensinamentos
supraexpostos, resulta de meridiana clareza a possibilidade e até a necessidade
de controle judicial dos atos administrativos, mesmo aqueles praticados dentro
da chamada esfera de atuação discricionária, porque somente esse controle, a par
de outros previstos na Lei Magna, é capaz de garantir que a Administração atue
sempre pautada pelo princípio da legalidade estrita, jamais desbordando
eventuais opções que o vazio da norma lhe deixe (já que o legislador não tem
como prever todas as situações concretas da vida) para uso arbitrário do Poder.



4. NOSSO CONCEITO DE
DISCRICIONARIEDADE ADMINISTRATIVA:

Através de uma ótica funcional da
Administração, podemos definir a discricionariedade administrativa como sendo o
dever de o Administrador Público, ante o grau de imprecisão existente na norma,
seja essa imprecisão derivada de conceitos axiológicos ou multissignificativos,
optar pela solução que mais se compatibilize com o interesse público, ditado
pela Constituição, pelas normas de inferior hierarquia e pelos valores
dominantes ao tempo da consecução do ato.

Despretensiosamente, nosso conceito
busca realçar a idéia de um " DEVER " discricionário.

Compromete-se com a necessidade de o
Administrador estar sempre vinculado à legalidade, enquanto conceito amplo, hoje
integrado também por outras fontes de Direito distintas da lei " stricto sensu
".

Por fim, ressalta o império do
interesse público sobre todas as condutas administrativas.



5. O PRINCÍPIO DA PRIORIDADE
ABSOLUTA AOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE:

De forma inédita na legislação
brasileira, o Constituinte de 1988 fez inserir, no art. 227, o chamado princípio
da prioridade absoluta, quando determina ser dever da família, da sociedade e do
Estado, assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito
à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à
cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e
comunitária.

Essa nota diferencial em relação a
outros campos de atuação das políticas públicas, a fim de que não pairasse
qualquer dúvida quanto à aplicabilidade do preceito constitucional (que alguns
ainda insistem de taxar de meramente programático), veio reiterada e esmiuçada
na Lei nº 8.069/90, mais conhecida como Estatuto da Criança e do
Adolescente.

Reza o art. 4º:
"É dever da família, da comunidade,
da sociedade em geral e do Poder Público assegurar, com absoluta prioridade -
grifei -, a efetivação dos direitos referentes à vida, à saúde, à alimentação, à
educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao
respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

Parágrafo Único - A garantia de
prioridade compreende:

a) primazia de receber proteção e
socorro em quaisquer circunstâncias;

b) precedência do atendimento nos
serviços públicos ou de relevância pública;

c) preferência na formulação e na
execução das políticas sociais públicas;

d) destinação privilegiada de
recursos públicos nas áreas relacionadas com a proteção à infância e à
juventude" - grifos meus.

O dispositivo fala por si só. É por
demais explicativo, mormente para quem está imbuído do espírito da lei e dos
critérios que devem nortear sua interpretação.

O art. 6º do ECA traça os rumos da
hermenêutica a ser empregada por seu aplicador, destacando os fins sociais a que
se dirige; as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e
coletivos e a condição peculiar da criança e do adolescente de pessoas em
desenvolvimento.

Ainda que não o fizesse, é mister ao
intérprete abrir mão da chamada " hermenêutica tradicional ", que nunca valorou
corretamente a força normativa dos princípios, e realizar um trabalho exegético
multilateral, que leve em conta não só a valoração política, como a social e até
a econômica 30.

30 Nesse diapasão apregoa AUGUSTIN
GORDILLO, em seus " Princípios Gerais de Direito Público", apud Johnson Barbosa
Nogueira, em artigo nominado " A Discricionariedade Administrativa sob a
Perspectiva da Teoria Geral do Direito ", " in " GENESIS - Revista de Dir.
Administrativo Aplicado, nº 3, p. 747.

O mestre em Direito Econômico,
JOHNSON BARBOSA NOGUEIRA, em excelente trabalho publicado na Revista GENESIS de
Direito Administrativo, procura destacar a função hermenêutica dos princípios.
Segundo ele,

"Os princípios são referenciais de
valoração jurídica, os grandes responsáveis para não se ter uma valoração livre,
mas emocionalmente conceitual. São os princípios a ferramenta primordial para o
preenchimento das lacunas (axiológicas) do ordenamento jurídico" 31.

31 op. cit., p. 747.
Prioridade, segundo o mais popular
dos dicionaristas brasileiros, AURÉLIO BUARQUE DE HOLANDA FERREIRA, é

"1. Qualidade do que está em
primeiro lugar, ou do que aparece primeiro; primazia. 2. Preferência dada a
alguém relativamente ao tempo de realização de seu direito, com preterição do de
outros; primazia. 3. Qualidade duma coisa que é posta em primeiro lugar, numa
série ou ordem" 32 .

32 "Novo Dicionário Aurélio da
Língua Portuguesa", p. 1393, Ed. Nova Fronteira.

ABSOLUTA, segundo o mesmo " Aurélio
" (hoje sinônimo de dicionário de nossa língua), significa ilimitada,
irrestrita, plena, incondicional.

A soma dos vocábulos já nos indicia
o sentido do princípio: qualificação dada aos direitos assegurados à população
infanto-juvenil, a fim de que sejam inseridos na ordem-do-dia com primazia sobre
quaisquer outros.

Segundo o Promotor de Justiça WILSON
DONIZETI LIBERATI, especialista na área dos direitos da criança,

"Por absoluta prioridade, devemos
entender que a criança e o adolescente deverão estar em primeiro lugar na escala
de preocupação dos governantes; devemos entender que, primeiro, devem ser
atendidas todas as necessidades das crianças e adolescentes(...).

Por absoluta prioridade, entende-se
que, na área administrativa, enquanto não existirem creches, escolas, postos de
saúde, atendimento preventivo e emergencial às gestantes, dignas moradias e
trabalho, não se deveria asfaltar ruas, construir praças, sambódromos,
monumentos artísticos etc., porque a vida, a saúde, o lar, a prevenção de
doenças são mais importantes que as obras de concreto que ficam para demonstrar
o poder do governante"33.

33 "O Estatuto da Criança e do
Adolescente - Comentários", pp. 4/5, Ed. IBPS.

O jurista DALMO DE ABREU DALLARI 34,
comentando o art. 4º do ECA, destaca a necessidade de serem priorizados o apoio
e a proteção à infância e juventude, por mandamento constitucional. Mais.
Preceitua não ter ficado ao alvedrio de cada governante decidir se dará ou não
apoio prioritário às crianças e aos adolescentes.

34Estatuto da Criança e do
Adolescente Comentado, p. 25, 1ª ed., Malheiros.

Exsurge com clareza, das
considerações tecidas, não ser possível qualificar a norma insculpida no art.
227 da CF como sendo de eficácia contida ( na classificação exemplar de José
Afonso da Silva ); nem como sendo " not self-executing ", na já superada
taxionomia do Direito Americano.

A norma é clara, passível até de uma
exegese meramente gramatical (aquela que exige do intérprete o mínimo esforço
racional), embora seja recomendável avançar no " iter " hermenêutico e se lançar
mão dos métodos lógico e teleológico, quando, então, virão à lume os
dispositivos dos arts. 4º e 6º do ECA.

A prioridade absoluta, enquanto
princípio-garantia constitucional, vem sendo reconhecida em alguns julgados de
nosso país.

É do Tribunal de Justiça do Distrito
Federal o primeiro acórdão, verdadeiro "leading case", do qual tivemos
conhecimento no qual há menção clara a ele, " in verbis":

"Do estudo atento desses
dispositivos legais e constitucionais, dessume-se que não é facultado à
Administração alegar falta de recursos orçamentários para a construção dos
estabelecimentos aludidos, uma vez que a Lei Maior exige PRIORIDADE ABSOLUTA -
art. 227 - e determina a inclusão de recursos no orçamento. Se, de fato, não os
há, é porque houve desobediência, consciente ou não, pouco importa, aos
dispositivos constitucionais precitados encabeçados pelo parágrafo sétimo do
art. 227"35.

35 Apel. Cível nº 62, de 16.04.93,
acórdão 3.835.

O Tribunal de Justiça Gaúcho, em
decisão anteriormente mencionada, também faz referência ao princípio quando
adverte:

"A exigência de absoluta prioridade
não deve ter conteúdo meramente retórico, mas se confunde com uma regra
direcionada, especificamente, ao Administrador Público"36.

36 Apel. Cível 596017897, 7ª Câmara
Cível.

Partindo-se da premissa de que a
norma do art. 227 é de eficácia plena (distanciando-se em tudo daquelas que
alguns insistem em catalogar como sendo de conteúdo meramente programático, cada
vez mais raras em nosso ordenamento jurídico marcadamente positivado), temos de
reconhecê-la, sim, como um fator a mais a limitar o campo de atuação
discricionária do administrador público.

Pensar de outra maneira é converter
o art. 227 e o microssistema do ECA em meras cartas de intenções,
desvirtuando-os de seu sentido evolutivo, de sua virtual condução a uma utopia
concreta.

É também ignorar que diversas normas
constitucionais, como bem ensina o juspublicista luso GOMES CANOTILHO,
destinam-se a formular roteiros de ação que os poderes públicos devem
concretizar, os quais adquirem especial relevância nos programas de governo
37.

37 Direito Constitucional, p. 74,
Ed. Almedina, 6ª edição, 1993.

EDUARDO GARCIA DE ENTERRÍA e
TOMÁS-RAMÓN FERNÁNDEZ, dissertando sobre os princípios constitucionais 38 tecem
considerações críticas a respeito dessa classificação de algumas normas
inseridas na Constituição como sendo princípios meramente programáticos.
Textualmente, vejamos:

"Estes valores não são pura
retórica, temos de impugnar essa doutrina, de tanta força ineficaz entre nós -
simples princípios programáticos - sem valor normativo de aplicação possível;
pelo contrário, são justamente a base inteira do ordenamento; o que há de
presidir, portanto, toda sua interpretação e aplicação" - grifei.

38 " in " Curso de Direito
Administrativo, p. 393, Ed. Rev. dos Tribunais.

A partir do momento em que se tem
uma visão nítida do sistema, do qual ressalta o princípio em foco, certamente
que nenhum magistrado ousará denegar justiça sob o argumento da inviabilidade de
exame do agir discricionário do administrador.



6. PERIGO DE DESRESPEITO ÀS NORMAS
CONSTITUCIONAIS:

Ao se enfatizar o assento
constitucional do princípio da prioridade absoluta (art. 227 da CF), é mister
que explicitemos a sua eficácia jurídica.

Sob a inspiração da doutrina de JOSÉ
AFONSO DA SILVA, é possível situar o princípio em comento dentre os princípios
gerais informadores de toda a ordem jurídica nacional. Portanto, traduz-se ele
em norma de eficácia plena e aplicabilidade imediata 39.

39Aplicabilidade das Normas
Constitucionais, p. 108, 2ª edição, Ed. Revista dos Tribunais.

Nessa linha de raciocínio, não
merece acolhida a argumentação de que nossa Constituição, no tocante à
priorização das questões atinentes à infância e juventude, seria de cunho
programático. Por essa trilha equivocada, " data maxima venia ", optou o e.
Superior Tribunal de Justiça no julgamento de Recurso Especial interposto nos
autos de ação civil pública ajuizada pelo " parquet " de Goiás, " verbis
":

"A nossa Constituição de 1988, mais
do que todas as Cartas e Constituições brasileiras anteriores é dirigente
(dirigierende Verfassung) e programática (programmatische Verfassung). Ela
almeja construir uma sociedade livre, justa e solidária (art. 3º, I),
erradicando a pobreza e a marginalidade e reduzir as desigualdades sociais e
regionais (id. III). Em outras palavras, um dos objetivos fundamentais da nossa
República Federativa é oferecer diretivas modeladoras para a própria sociedade,
acenando com a intervenção do poder público na ordem econômica, financeira,
cultural e ambiental. Essas normas programáticas se destinam especialmente aos
Poderes Públicos. Ao Legislativo, para que ele procure elaborar as normas
infraconstitucionais consoante programas e tarefas gizados pela Constituição. Ao
Judiciário, para que ele igualmente exerça a denominada atualização
constitucional (Verfassungsaktualisierung), ou seja, interprete as leis tal qual
preceituado na Constituição. Acontece que no caso dos autos as normas
mai

ores não estabeleceram, de modo
concreto, a escala das prioridades - grifei. Assim, não se tem como obrigar o
Executivo a construir o Centro de Recuperação e Triagem para a recepção de
adolescentes submetidos ao regime compulsório de internamento. Haveria uma
verdadeira intrusão do Judiciário no Executivo" 40.

40 Rec. Especial nº 63.128-9 -
Goiás; Rel. Min. Adhemar Maciel.

Labora em erro o eminente Relator
quando entende imprescindível uma definição, na perspectiva infraconstitucional,
de uma " escala das prioridade ". Ora, ou a questão é prioritária, com a nota de
absoluta, ou não é.

O Brasil parece regozijar-se de ser
o país do faz-de-conta. O único no mundo onde 12% (doze por cento) - limite
constitucionalmente imposto à taxa anual de juros - pode ser 20, 25%
.

Sendo o Estado de Direito um Estado
Constitucional, torna-se implícita a existência de uma Constituição que sirva de
ordem jurídico-normativa fundamental, vinculando a todos os poderes
públicos.

GOMES CANOTILHO, ao discorrer sobre
a noção de SUPREMACIA DA CONSTITUIÇÃO, desdobra sua lição em quatro tópicos: a)
vinculação do legislador à constituição; b) vinculação de todos os restantes
atos do Estado à constituição; c) o princípio da reserva da constituição e d)
força normativa da constituição.

Explicando o item b, acentua que o
princípio da constitucionalidade não se impõe apenas sobre os atos que não
violem positivamente a Constituição, mas também repercute sobre a omissão
inconstitucional, por falta de cumprimento das imposições constitucionais ou de
ordens de legislar.

Sobre a força normativa da
constituição, adverte:

"No entanto, quando existe uma
normação jurídico-constitucional ela não pode ser postergada quaisquer que sejam
os pretextos invocados. Assim, o princípio da constitucionalidade postulará a
força normativa da constituição contra a dissolução político-jurídica
eventualmente resultante: (1) da pretensão de prevalência de fundamentos
políticos, de superiores interesses da nação, da soberania da Nação sobre a
normatividade jurídico-constitucional; (2) da pretensão de, através do apelo ao
direito ou à idéia de direito, querer desviar a constituição da sua função
normativa e substituir-lhe uma superlegalidade ou legalidade de duplo grau,
ancorada em valores ou princípios transcendentes (PREUSS) 41."

41 op. cit., pp.
360/362.

O perigo de converter-se a
Constituição em mera carta de intenções já havia sido apontado pelo Prof. KONRAD
HESSE, em sua monografia " A Força Normativa da Constituição", escrita para
rebater o texto " O que é uma Constituição Política" de FERDINAND
LASSALE.

HESSE confere peculiar destaque à
chamada vontade da Constituição, alinhando-a à vontade de poder.

Segundo ele,
"aquilo que é identificado como
vontade da Constituição deve ser honestamente preservado, mesmo que, para isso,
tenhamos de renunciar a alguns benefícios, ou até a algumas vantagens justas.
Quem se mostra disposto a sacrificar um interesse em favor da preservação de um
princípio constitucional, fortalece o respeito à Constituição e garante um bem
da vida indispensável à essência do Estado, mormente ao Estado democrático.
Aquele que, ao contrário, não se dispõe a esse sacrifício, malbarata, pouco a
pouco, um capital que significa muito mais do que todas as vantagens angariadas
e que, desperdiçado, não mais será recuperado"42.

42 p. 22, Ed. Sergio Antonio
Fabris.

A lição do mestre germânico merece
uma profunda reflexão, máxime em nosso país onde a regra é o desrespeito às
normas constitucionais, sempre sob o argumento de não serem elas providas de
aplicabilidade imediata.

Oprimir a eficácia do princípio da
prioridade absoluta é condenar seus destinatários à marginalidade, à opressão,
ao descaso.

É fazer de um diploma que se
pretende revolucionário, o Estatuto da Criança e do Adolescente, instrumento de
acomodação.



7. A AÇÃO CIVIL PÚBLICA PARA
CONCRETIZAÇÃO DOS BENS-INTERESSES TUTELADOS PELO ECA E PELA
CONSTITUIÇÃO:

Os idealizadores do Estatuto da
Criança e do Adolescente, no tocante à proteção judicial dos interesses desse
contingente de cidadãos, agiram em total consonância com o princípio
constitucional da Universalidade da Jurisdição.

Tocante à ação civil pública ( que é
um dentre tantos remédios processuais a que alude a L. 8.069/90), foi ela objeto
de ampliação.

Está o Ministério Público legitimado
(coisa que, apesar dos quase sete anos de vigência do ECA, poucos lidadores do
Direito o sabem)43 a ajuizar ação civil pública para proteção de interesses
individuais de crianças e adolescentes.

43 O próprio HUGO NIGRO MAZZILLI,
quando conceitua ação civil pública, em obra atualizada após a vigência do ECA,
a designa como sendo aquela ajuizada pelo Ministério Público e demais
legitimados, sempre no intuito de tutelar interesses difusos, coletivos ou
individuais homogêneos, partindo de critério objetivo-subjetivo, baseado na
titularidade e no objeto específico da prestação jurisdicional pretendida na
esfera cível

Louvando-se nesse permissivo (art.
201, inc. V, do ECA), a então Promotora de Justiça junto à Comarca de
Estrela(RS), Yeda Husek Wolff, ajuizou demanda contra o Estado do Rio Grande do
Sul, com o fito de compeli-lo a suportar encargos decorrentes do transplante de
medula óssea - única forma de salvar a vida de uma menor - e arcar com os
remédios, transporte e despesas hospitalares derivadas do
procedimento.

Em contestação, o Estado-réu
argumentou, dentre outras coisas, ser o Ministério Público carecedor de ação,
por fundamentar o pleito em matéria constitucional não regulamentada por lei
ordinária.

A demanda foi julgada procedente,
por sentença confirmada pelo Tribunal de Justiça do Estado do RGS. No acórdão, o
Relator designado (houve um voto divergente) faz expressa referência ao art. 227
da CF, conforme veremos:

"Então, atendendo a este fato e à
circunstância muito bem colocada pelo Ministério Público, autor da ação civil
pública, vislumbro a incidência do art. 227 da Constituição Federal, que obriga
o Poder Público, o Estado como um todo, a assegurar à criança e ao adolescente,
com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação,
ao lazer, etc. No caso específico, o direito à vida.

Ainda, o art. 4º do Estatuto da
Criança e do Adolescente diz que é dever da sociedade em geral e do Poder
Público assegurar com prioridade a efetivação dos direitos referentes à vida, à
saúde, à alimentação, etc. No seu parágrafo único, diz que a garantia da
prioridade compreende a primazia em receber proteção e socorro em quaisquer
circunstâncias "44.

44 Reexame Necessário nº 596035428,
8ª Câm. Cível, Redator p/acórdão Des. Eliseu Gomes Torres.

O importante nessa decisão, a par do
reconhecimento da legitimidade ministerial para o ajuizamento de ação civil
pública para tutela de interesse individual (matéria essa que também foi objeto
de impugnação estatal), é o posicionamento favorável à idéia de eficácia plena e
aplicabilidade imediata dos direitos reconhecidos na CF à população
infanto-juvenil.

A legitimação para as ações de
responsabilidade civil por ofensa aos direitos assegurados à criança e ao
adolescente está regulada nos arts. 201, inc. V, e 210, ambos do ECA.

Dentre as espécies de interesses a
serem argüidos em juízo, ressaltam, por sua abrangência, os difusos, aos quais
ADA PELLEGRINI GRINOVER atribui a seguinte qualificação jurídica:

"Trata-se de interesses comuns a uma
coletividade de pessoas, que não repousam necessariamente sobre uma
relação-base, sobre um vínculo jurídico bem definido que as congregue. Tal
vínculo, nota Barbosa Moreira, pode até inexistir, ou ser extremamente genérico
- reduzindo-se, eventualmente, à pura e simples pertinência à mesma comunidade
política - e o interesse que se quer tutelar não é função dele, mas antes se
prende a dados de fato, muitas vezes acidentais e mutáveis; existirá, v.g., para
todos os habitantes de determinada região, para todos os consumidores de certo
produto, para todos os que vivam sob tais ou quais condições sócio-econômicas ou
se sujeitem às conseqüências deste ou daquele empreendimento público ou privado,
e assim por diante"45.

45 "A Tutela Jurisdicional dos
Interesses Difusos", Rev. do Processo nº 14/15, pp. 27/27.

O objeto dessas ações civis públicas
está elencado, exemplificativamente, no art. 208 do ECA.

Onde houver oferta irregular ou
não-oferta dos serviços de educação, saúde, profissionalização infanto-juvenil e
outros serviços relativos às crianças e adolescentes, o Ministério Público, a
União, os Estados, os Municípios, o Distrito Federal, os Territórios e as
associações legalmente habilitadas (art. 210 do ECA) poderão propor ação civil
pública .

WILSON DONIZETI LIBERATI chega ao
ponto de afirmar ser possível o emprego desse tipo de ação para impedir o gasto
de dinheiro público em obras não prioritárias para a comunidade, apurando-se a
responsabilidade civil e criminal do ordenador das despesas. Faz essa ousada e
lúcida assertiva com base no princípio da prioridade absoluta, definido por ele
como " viga-mestra" do Estatuto 46.

46 op. cit., p. 141.
Com todo esse arcabouço legislativo,
não devemos vacilar quanto ao ajuizamento de demandas tendentes a tornar reais
os direitos abstratamente assegurados à massa de crianças e adolescentes.

A utilização da via jurisdicional se
faz necessária sempre que o Estado se omite quanto a alguma política social ou
ação de abrangência individual contemplada no ECA.

FÁBIO KONDER COMPARATO advoga ser do
Executivo e do Legislativo a competência conjunta para aprovação e
encaminhamento dos programas de ação governamental e que a intervenção do
Judiciário somente se impõe quanto determinado direito social é negligenciado.
Nessa hipótese, esse Poder está reconhecendo uma omissão inconstitucional por
parte dos demais poderes 47.

47 A Nova Cidadania. Anais da XIV
Conferência da OAB, Vitória, p. 49, set./1992.

Somente a proliferação dessas ações
será capaz de fazer desabrochar o senso de Justiça dos integrantes de nossas
cortes, pois o que se constata hoje, onde encontramos escassos julgados dessa
natureza, é uma exacerbada timidez dos integrantes do Poder
Judiciário.

Esse problema, aliás, foi detectado
com percuciência pela Profª. JOSIANE ROSE PETRY VERONESE, na obra com a qual
conquistou o título de Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa
Catarina, " in literis ":

"Depreende-se dessa questão que,
apesar da existência de todo um instrumental, cuja efetividade dependeria
tão-somente de seu uso, restringe-se a poucos casos isolados, e o que é ainda
pior, fica-se à mercê de determinados padrões, que antevêem na realização das
normas jurídicas que tenham a função de contribuírem na transformação da
sociedade, um certo perigo de desequilíbrio no sistema da tripartição dos
poderes. Temem que o Poder Judiciário, à medida que julgue procedentes a grande
maioria dos casos de conflitos que envolvem o indivíduo, ou coletividades
inteiras que interpõem ações civis públicas em razão da inadimplência do Estado
no cumprimento de suas políticas sociais, estaria adentrando um campo que não
lhe pertence, pois são questões que tradicionalmente se entendia estarem a cargo
dos outros dois Poderes"48.

48 Interesses Difusos e Direitos da
Criança e do Adolescente, p.258, Ed. Del Rey.

O acanhamento do Judiciário quando
decide ações civis públicas para tutela de interesses protegidos pelo ECA pode
ser atribuído a vários fatores.

É inequívoco o despreparo para lidar
com a matéria (os cursos jurídicos de graduação e de pós-graduação raramente
incluem em seus currículos uma visão sistemática da doutrina de proteção à
infância e adolescência e, quando o incluam, o fazem à guisa de disciplina
opcional).

Muitos dos atuais juízes, mormente
aqueles que atualmente integram órgãos colegiados, tiveram sua formação sob a
égide do Código de Menores, calcado na doutrina da chamada "situação irregular",
o qual não contemplava em seu sistema qualquer forma de responsabilização do
Estado por eventuais omissões. Hoje, quem pode ser declarado em situação
irregular é o Estado omisso.

Mas o que mais nos chama a atenção
é, sem dúvida, o receio de invasão em atribuições afetas a outros poderes, tanto
assim que, da leitura de diversos julgados nesse diapasão, surgiu nossa
motivação para o presente trabalho.

Emblemático é o acórdão proferido
pelo Tribunal de Justiça de Santa Catarina, no Agravo de Instrumento nº 8.443,
interposto pelo respectivo Estado em ação civil pública promovida pelo "parquet"
no intuito de condená-lo a reformar uma escola pública situada na cidade de
Xaxim.

Houve deferimento da liminar pelo
juízo " a quo", o que motivou o recurso. Apreciando a irresignação, a Câmara
houve por bem provê-la. Na ementa, assim se expressa o relator:

"A Câmara decidiu acolher o pedido
de reforma para declarar a extinção da ação civil pública proposta pelo
Ministério Público contra o Estado, por carência de ação, em face da
impossibilidade jurídica do pedido, com base no art. 267, VI, combinado com o
parágrafo 3º do mesmo artigo, do CPC, uma vez que a pretensão deduzida na
petição inicial não encontra admissibilidade no ordenamento jurídico vigente, na
medida em que não podem o Juiz tanto quanto o próprio Tribunal avocar para si a
deliberação de atos da Administração Pública, que resultam sempre e
necessariamente de exame de conveniência, oportunidade e conteúdo dos atos de
exercício dos outros Poderes, Executivo e Legislativo, do Estado; tendo-se,
ainda, em consideração que a Administração Pública nada pode fazer que não se
contenha em seus recursos, e há de fazê-lo segundo as previsões programáticas e
orçamentárias, com participação do Poder Legislativo, cujas atribuições
igualmente restaram atropeladas..."49.

49 Julgado em 3.5.94, Rel. Des.
Rubem Córdova.

Há quem chegue ao ponto de fulminar
a própria legitimidade ministerial para a ação civil pública "lato sensu". Tal
exagero pode ser constatado em voto proferido pelo Des. Lécio Resende, do
Distrito Federal:

"(...)tive notícia de que o
professor Calmon de Passos, ardoroso defensor da introdução na Constituição dos
predicamentos obtidos pela Instituição (Ministério Público), em conferência
pronunciada na Escola Superior do Ministério Público, teria se penitenciado,
convalidando até o entendimento que tenho casualmente me manifestado aqui quanto
à absoluta ilegitimidade para a propositura da chamada ação civil pública, que
para mim já induz a idéia de paradoxo, porque até quando aprendi a ação civil
diz respeito, exclusivamente, a interesse privado tutelado pela lei. Não posso
conceber a existência de ação civil pública"50.

50 HC 6.656/94.
Esse tipo de posicionamento bem
externa a necessidade de uma reformulação no ensino jurídico brasileiro, para
adequá-lo às novas demandas sociais, tão bem detectadas e definidas no magistral
voto do Ministro do STF, Sepúlveda Pertence, o qual se transcreve parcialmente:

" É manifesto que as demandas reais
da sociedade pluralista de massas deste século têm lançado por terra, mesmo no
âmbito dos regimes capitalistas, alguns dogmas fundamentais do primitivo
liberalismo burguês, entre eles, particularmente, a aversão dos revolucionários
do séc. XVIII às formações sociais intermediárias, que então se pretendeu
proscrever, como intoleráveis resíduos do feudalismo. Hoje, ao contrário, o
certo é que - dos sindicatos de trabalhadores às corporações empresariais e às
ordens de diversas profissões, dos partidos às entidades de lobby de toda, das
sociedades de moradores às associações ambientalistas, dos centros de estudo aos
agrupamentos religiosos, das minorias organizadas aos movimentos feministas -
tudo são formações sociais reconhecidas, umas e outras, condutos reputados
imprescindíveis à manifestação das novas dimensões da democracia contemporânea,
dita democracia participativa e fundada, não mais na rígida separação, sonhada
pelo liberalismo individual da primeira hora, mas na in

teração cotidiana entre o Estado e a
sociedade- grifei . Nesse contexto, era fatal, como tem ocorrido desde o início
do século, que progressivamente se viesse pondo em xeque o dogma do direito
processual clássico, corolário das inspirações individualistas da ideologia
liberal, qual seja, o da necessária coincidência entre a legitimação para agir e
a titularidade da pretensão material deduzida em juízo"51.

51 RT 142/446.
Sem que se olvide da vinculação da
Administração Pública à existência de recursos e sua previsão orçamentária, a
observância do princípio da prioridade absoluta impõe a necessária inclusão
desses recursos que visem a atender os direitos previstos abstratamente no ECA e
na Carta Magna em orçamento. Esse, aliás, deve ser o pedido nuclear das ações
civis com a preponderante carga eficacial cominatória.



CONCLUSÃO:
De tudo o que foi exposto,
dessume-se ser o princípio da prioridade absoluta aos direitos das crianças e
adolescentes mais um vetor de limitação ao agir discricionário do administrador
público.

Tal conclusão decorre, em primeiro
lugar, do próprio princípio da legalidade que deve nortear toda a pauta de ações
dos integrantes do Poder Executivo, dogma esse insculpido no art. 37 da
Constituição Federal.

Não há que se falar, por essa razão,
em ingerência ou em falta de atribuição do Judiciário para determinar como deve
ser o agir do Administrador, porquanto é a própria lei, e a Lei Maior, que o
descreve no tocante aos direitos das crianças e adolescentes.

O fato de o princípio da prioridade
absoluta encontrar assento constitucional denota seu sentido norteador,
verdadeira super-norma a orientar a execução e a aplicação das leis, bem como a
feitura de diplomas de inferior hierarquia, tudo dentro da mais estrita
legalidade.

Na discussão sobre a implementação
dos bens-interesses previstos no Estatuto da Criança e do Adolescente jamais
pode ser denegada qualquer pretensão deduzida em juízo sob o argumento de que o
Administrador público tem o discricionário "poder " de eleger prioridades e
estabelecer oportunidades, já que a Constituição Federal, em seu art. 227,
ampliada pelo art. 4º do ECA, não estabelece qualquer hierarquia entre os
direitos ali reconhecidos como prioritários.

De outra banda, impõe-se uma
oxigenação ideológica nos integrantes do Judiciário e do Ministério Público para
que de fato se conscientizem de sua função política, enquanto integrantes de
instituições cujo compromisso maior é com o interesse público, tendo como
valores supremos aqueles estabelecidos no preâmbulo de nossa vigente Carta
Magna.

Também é de ser reconhecido o
instituto da ação civil pública como um instrumento por demais relevante na
prestação jurisdicional, de dimensão política considerável, permitindo o "vir ao
mundo" de demandas outrora excluídas do acesso à Justiça, garantindo a
efetivação e a democratização dos direitos fundamentais assegurados pelo ECA.

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