Ética e Conselho Tutelar

José Carlos Sturza de Moraes

O tema, ética na prática conselheira, que escolhi junto aos organizadores é muito caro para mim. Talvez tenha sido minha maior procura e reflexão quando do exercício dos meus dois mandatos como conselheiro desta cidade e quero aqui aproveitar para precisar melhor algumas coisas já expostas naquele diálogo que tivemos no Colégio do Rosário.
A ética não é qualquer coisa. Não é só uma palavra ou um chavão. Ética, nos Conselhos Tutelares, como noutroslugaresdeinteração social, tem aver com posturapessoal, com capacidadeepré-disposição para o diálogo, para - centralmente - uma escuta do outro como também possuidor de conhecimentos e condições de colaborar na solução de suas próprias questões. E o problema todo é o de como se faz isso.
Todos nós temos uma ética, uma forma de julgar os acontecimentos e nos relacionarmos em sociedade. Uns são membros de partido político, outros não. Alguns são pertencentes a algum tipo de organização religiosa, têm suas crenças e, a partir delas, buscam o bem para o semelhante, e igualmente outros não. Pois como disse Shakespeare, "algumas pessoas simplesmente não se importam".
É importante saber quem somos e a partir de que lugar falamos. O problema é quando se misturam as coisas, pois no Conselho Tutelar, os conselheiros devem ser apenas conselheiros. Não religiosos ou militantes partidários. Precisam ser pessoas capazes de trabalhar respeitando as visões e entendimentos das pessoas que vão até os conselhos buscar ajuda.
Escutar, realmente, e levar em conta o que o outro diz é algo muito difícil. Exige disposição e vigília permanentes. E isso não apenas nos Conselhos Tutelares.
Há poucos meses, um colega de uma cadeira de antropologia me contou algo interessante e que serve para essa reflexão. Numa mesa de debates onde se falava justamente disso, da necessidade de se escutar o outro, de levar em conta sua narrativa, seus códigos, etc., relatou-me que uma participante da platéia, identificando-se como profissional graduada na área de saúde, teria dito mais ou menos o seguinte: "É isso mesmo! É maravilhoso. Eu também há anos trabalho com grupos num posto de saúde. E a gente escuta muito as pessoas. Deixa falarem uma, duas, três vezes, e depois diz a verdade". Ou seja, essa profissional, numa falha bastante comum, mas também numa busca de diálogo, fala de sua experiência real: a de dizer às pessoas a verdade, de lhes 'colocar nos trilhos', de lhes ajudar. Quanto às falas das pessoas, parece que a escuta da profissional se resume ao fato de se ouvir, mas um ouvir que não significa escutar, levar em conta, apoiar as pessoas a elas mesmas construírem seus caminhos.
Outro exemplo, mais caseiro, trago de outro evento, também de capacitação de conselheiros tutelares, em 2001 ou 2002, quando, numa discussão de caso, foi trazido cópia de ofício de um Conselho Tutelar, mais ou menos com o seguinte relato: "Fulano, 11 anos, foi abrigado há dois anos. Pai abusador. Parece que já voltou para a escola, segundo o abrigo". Da leitura, restou uma série de questionamentos, tais como: E os outros irmãos? E a mãe da criança? Como é a teia familiar? E as respostas, evidenciando despreparo e/ou descompromisso, respectivamente, foram: "Segundo o menino, parece que o pai não abusava dos outros. A mãe é um pouco doentinha, da cabeça, sabe? Não tínhamos carro no dia do abrigamento e este ano o abrigo começou a visitar os parentes".
Diante do mal-estar do caso relatado, todos os presentes, integrantes do abrigo, da promotoria e outros agentes da rede de atendimento, começaram a criticar a ação conselheira, esquecendo que, no caso em análise, todos tiveram problemas de encaminhamento. Pois o abrigo, desde o acolhimento, deveria ter intervido; a promotoria, que naquela cidade, recebia as informações de abrigagem em até 48h, também deveria ter agido. Mas ambos os representantes somente se deram conta da desproteção da criança, e possivelmente de seus irmãos, pelo acaso de um momento de formação, evidenciando - entre outras coisas - a importância da constituição desses espaços de diálogo, que chamamos também de redes integradas. E digo isso, não a partir de fora como um supervisor infalível, pois é impossível não errar trabalhando com pessoas; mas temos que aprender com os erros (pois erro, com ensinou Paulo Freire, faz parte do processo de aprendizagem).
Digo isso não em nome de uma lógica do dever pelo dever ou da punição como regra de conduta, ou do reforço de noções como 'de quem é a culpa'. Não se trata disso, mas apenas para não seguirmos (como se faz também noutros espaços, e insisto que isso é uma prática social amplamente utilizada) apenas selando pactos de mediocridade: como todos erraram, selamos silêncios de boas relações e nos entendemos - "afinal todos temos nossas dificuldades". Ou como digo às vezes de forma caricata: "enquanto nós SASE, NASF, etc, as crianças SNIF". Traduzindo: enquanto nos entendemos de forma superficial, alicerçados em expressões politicamente corretas, as crianças e adolescentes choram, assim como antigamente os menores, porque legadas a própria sorte, desprotegidas, numa teia desprotetiva que não se entrelaça, apesar das boas intenções.
Quando iniciei como conselheiro, lá em novembro de 1995, lembro de uma abordagem infeliz feita por mim, quando estava de plantão, creio que num sábado. Recebi uma ligação de uma pessoa anônima denunciando que crianças estavam sob o forte sol, com suas mães, esmolando próximo do DMAE da Av. Independência. Fui ao local. Percebendo que era real a situação, e vendo que as crianças correram quando viram a Kombi do Conselho Tutelar, não tive dúvidas. Chamei um policial militar que estava próximo para me auxiliar na abordagem, pois as crianças poderiam ser atropeladas com a correria. Depois de muita intimidação, e essa é a melhor definição da abordagem apoiada pela Brigada Militar, consegui que um grupo e suas mães, me acompanhassem até o plantão e lá descobri que se tratava de crianças de outra cidade próxima, algumas já atendidas por programas sociais.
Mas o maior saldo da abordagem foi a avaliação de que minha ação foi higienista, prática social ainda muito vigente e que consiste em limpar a cidade de suas chagas, a qualquer preço, preservando mais a paisagem do que apoiando pessoas. Prática, aliás, muito apoiada por nossa sociedade contemporânea, que não quer enxergar suas produções, escondida atrás da auto-desculpa de todos conhecida como "cidadão comum" - aquele que não é autoridade, não é contra nem a favor e que joga toda a responsabilidade pelas mazelas sociais para "as autoridades" e para os indivíduos.
Depois dessa abordagem, senti-me, e por muito tempo, como um condutor de carrocinha de cachorros, pois acredito que não é assim que devemos tratar de pessoas. Foi uma lição para mim, mas um trauma para as crianças e familiares, que nossa sociedade jogou nesta situação. Digo isso, apenas para afirmar novamente: é impossível não errar. Mas é necessário aprender com os erros e só aprendemos quando os reconhecemos; do contrário é cinismo, atuação, mentira. Quem só erra 'em tese', se esconde atrás de sua arrogância ou de desculpas vazias.
Há dez anos, num artigo intitulado "Conselho Tutelar, entre o Técnico e o Político", disponível para quem quiser no site da ABMP (www.abmp.org.br), no exercício de meu primeiro mandato, já realizava uma reflexão dessa dificuldade do lugar do conselheiro tutelar em nossa sociedade e seus desafios. E diria que as questões que lá colocava continuam pertinentes para nosso debate hoje. Ainda continua sendo um desafio congregar todas as características que se quer num conselheiro. Que seja uma pessoa atuante e que conheça a comunidade, que tenha noções básicas sobre relações sociais e, preferencialmente, experiência de trabalho direto com crianças e adolescentes, que seja articulador, defensor de direitos humanos, etc.
Portanto, permanece a dificuldade de aliar o técnico com o político. Por quê? Porque precisamos de distância profissional no atendimento. Temos que ouvir a todos com a busca de uma imparcialidade que não é neutra: a busca da preservação dos direitos de cada criança e adolescente, algumas vezes, momentaneamente, em contradição com o que dizem pais e educadores, e isso não é fácil.
E, nesse aspecto, quero chamar atenção para o colegiado, pois o Conselho Tutelar é um órgão colegiado e suas decisões precisam ser coletivas. Como um grupo, constituído por cinco pessoas, com trajetórias diferenciadas, o espaço semanal, e de cada momento de discussão de caso, pode ser um bom exercício prático de diálogo e alargamento de horizontes individuais e coletivos. Conselho Tutelar com decisões individuais, como regra, e sem colegiado 'prá valer', não é o Conselho Tutelar que precisamos para realizar a proteção prevista pelo Estatuto da Criança e do Adolescente.
Finalmente, quero reiterar que nos Conselhos Tutelares, os conselheiros não salvam ninguém. Deve-se trabalhar para que cada criança, adolescente, pai, mãe, outros familiares, preferencialmente em articulação com profissionais da educação, saúde e assistência social, em ações de rede, construa seus caminhos de vida e responsabilize-se, de acordo com suas possibilidades, por isso. Quanto mais sutil e discreta, melhor a intervenção. Os conselheiros não devem ser imprescindíveis na vida daqueles que atendem, mas sim eficientes no cumprimento de suas funções, para as quais receberam um mandato popular. Isso é diferente de militância e de credo religioso, embora, é claro, nossas bagagens devam nos acompanhar e ajudar a iluminar nosso caminho - mas não devem fazer de outros, necessariamente, seguidores.
Penso que estar aberto a ouvir, escutando e levando em conta o que o outro fala, é uma postura necessária, talvez a mais indispensável para ser-se conselheiro/a; senão nossos conselhos podem ficar mofados e nossas certezas nos cegar.
Sobre o autor:
José Carlos Sturza de Moraes é Conselheiro Tutelar de Porto Alegre (1995/2001); Acadêmico de Ciências Sociais/UFRGS; Coordenador do Reordenamento Institucional dos Abrigos do Estado (2001/2002); presidente da Fundação de Proteção Especial/RS (2002). Co-autor do livro "Conselhos Tutelares, impasses e desafios - a experiência de Porto Alegre (Volume I)". E-mail: sturza.demoraes@gmail.com


    

















Fonte:  http://www.crianca.mppr.mp.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=87  












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